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Entrevistas Crise do novo coronavírus evidencia urgência de um Sistema Nacional e práticas de colaboração na Educação maio | 2020
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No dia 11 de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o mundo estava vivendo uma pandemia do novo coronavírus, a Covid-19, e reconhecia que a estratégia de tentar conter a proliferação da doença não estava sendo suficiente. De lá pra cá, o mundo mudou. E continuará mudando.

Aeroportos fechados, hospitais lotados e aulas suspensas nas escolas de praticamente todos os países do globo. No Brasil, uma nação de dimensões continentais e vulnerabilidades expressivas por conta da enorme desigualdade social, a crise sanitária e de saúde pública se desenhou de forma particular. Estados e municípios lutam para oferecer respostas aos danos provocados pela pandemia e reclamam a inexistência de uma articulação nacional para o enfrentamento da crise.

Na educação brasileira os desafios são enormes – tanto para lidar com o momento atual de isolamento social quanto para planejar a volta às aulas. Um esforço que exige muita articulação e comprometimento de gestores educacionais. Afinal, são mais de 48 milhões de alunos e mais de 2,2 milhões de docentes – uma população maior do que 94 países do mundo. E cerca de 184 mil escolas, 78% delas pertencentes à rede pública. Um universo complexo em si.

Para ajudar a compreender o cenário atual e discutir saídas para a crise, o Movimento Colabora Educação conversou com João Marcelo Borges, diretor de Estratégia Política na organização Todos Pela Educação. Passando por diversas camadas do problema, ele falou sobre os erros e acertos de gestores públicos, sobre as urgências dessa agenda e, claro, sobre a importância do Regime de Colaboração para o hoje e para o amanhã.

Borges é enfático ao afirmar que não podemos esperar que as redes de ensino estejam plenamente capacitadas para atuar em colaboração a fim de efetivar um Sistema Nacional de Educação (SNE). E, nesse sentido, cita o Sistema Único de Saúde (SUS) como grande exemplo. Guilherme Lacerda, secretário-executivo do Movimento Colabora, concorda. “Apesar de termos exemplos pontuais de redes que conseguem atuar em Regime de Colaboração, nós não conseguimos construir ao longo do tempo um sistema único, nem uma cultura de pactuação de políticas públicas.”

Para ambos, o momento de crise, que exige ações coordenadas para que os impactos na aprendizagem dos alunos não sejam tão profundos, é particularmente especial. Mais do que nunca está sendo necessário colaborar para buscar soluções comuns. Confira a entrevista.

 

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João Marcelo Borges, do Todos pela Educação

Movimento Colabora Educação – Quais são suas percepções sobre essa pandemia que estamos vivendo? Já é possível fazer uma avaliação do enfrentamento da crise nesses últimos dois meses?

João Marcelo – A primeira coisa a ser dita é que estamos vivendo uma situação sem precedentes para as gerações vivas, sobre a qual temos pouquíssimo controle. E, nesse sentido, os desafios são muitos, para todos, não só para o campo da Educação. O deflagramento da crise foi muito abrupto, ninguém estava preparado. A ausência de planos de contingência tornou muito mais complexa a formação de respostas adequadas. Ninguém tem experiência no Brasil em lidar com algo assim. E temos demorado muito para absorver os aprendizados de outros países que já venceram o momento mais grave. Hoje, o que sabemos é que a medida mais recomendada para a pandemia atual é a mesma do episódio da gripe espanhola (1918-1920): distanciamento social.

Movimento Colabora Educação – E quais os impactos na Educação? O que gestores estaduais e municipais da educação básica estão tendo de encarar como desafios? 

João Marcelo – Do ponto de vista do gestor educacional, o maior desafio, ainda que tenha sido pouco falado, é manter o vínculo de profissionais e, sobretudo, de alunos com a escola. Porque seu fechamento e a suspensão das aulas presenciais, por um período que já se mostra longo, torna a manutenção do vínculo muito mais difícil. Além disso, outro desafio trata do que é a principal função da escola: garantir a efetividade do processo de ensino e aprendizagem. Agora a realidade nos mostra que uma das maiores dificuldades é assegurar o ensino de forma remota, mesmo com todas as condições socioeconômicas e de infraestrutura do Brasil, além da relativa falta de experiência e qualificação dos profissionais da Educação.

Movimento Colabora Educação – Qual sua avaliação sobre o papel do Governo Federal e as medidas necessárias para apoiar gestores estaduais e municipais neste momento?

João Marcelo – Minha avaliação é bem crítica. Até hoje o Governo Federal não aceitou o que está acontecendo. O Ministério da Educação continua tratando a pandemia com desdém. Mesmo seus técnicos e secretários não conseguiram até agora estruturar uma resposta coordenada federativa. Essa total alienação do governo, no sentido de admitir o que está acontecendo, impede qualquer ação mais estruturante de enfrentamento da crise. Afinal, quem não admite [um fato], não opera [uma solução].

Movimento Colabora Educação – E como estados e municípios têm lidado com essa inoperância?

João Marcelo – Percebo que as redes desistiram de esperar qualquer resposta do MEC. Elas entendem que é perda de tempo [continuar aguardando respostas do Governo Federal para a crise]. Neste momento, a única articulação possível é com o Congresso Nacional ou com a Casa Civil, por meio da Secretaria de Assuntos Federativos. Ou seja, é tudo muito complicado.

Movimento Colabora Educação – Uma questão transversal a qualquer solução para a educação no enfrentamento da crise parece ser a colaboração. Concorda? As redes sabem atuar em Regime de Colaboração (RC)? 

João Marcelo – Concordo. E, nesse sentido, existem redes mais e menos preparadas. Algumas possuem vasta experiência em Regime de Colaboração, tanto em modelos intermunicipais quanto entre estados e municípios. Temos hoje no Brasil dezenas de exemplos de consórcios. E acredito que o melhor exemplo que temos na educação básica é o próprio Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica]. Sem dúvida, uma medida de Regime de Colaboração em nível nacional.

Movimento Colabora Educação – Um debate que tem tudo a ver com a formalização do Sistema Nacional de Educação (SNE).

João Marcelo – Exato. Algo que sempre digo é que não podemos aguardar o preparo das redes para consolidar e formalizar o SNE. Vamos olhar para nossas boas experiências. Quando o SUS [Sistema Único de Saúde] foi criado, em 1988, não havia preparo nos municípios, aliás, os municípios sequer eram entes da federação. Eles eram departamentos dos governo estaduais. Então, a ideia de que precisamos capacitar, ou construir condições nas redes para, só depois, instituir o Sistema Nacional de Educação não faz sentido, nem lógico, nem histórico. Precisamos construir fazendo, oferecendo as condições para criar cultura. Esse é o exemplo do SUS, nosso maior aliado.

Movimento Colabora Educação – Ainda na pauta do Regime de Colaboração, você acha que estaríamos atravessando essa crise de forma diferente se o Sistema Nacional de Educação estivesse instalado no país?

João Marcelo – Sem dúvida seria diferente. Agora, mais do que nunca, o SNE está nos fazendo uma falta gigantesca. É a maior fragilidade que a educação básica enfrenta em termos de coordenação. Existe grande demanda das redes por um sistema nacional, ainda que não exista ação do MEC nesse sentido. Dessa forma, outros atores acabam assumindo a liderança. Hoje, existe aí no campo uma série de iniciativas tentando oferecer soluções e insumos para que estados e municípios possam lidar, à sua maneira e de acordo com suas condições, com a pandemia. É claro que uma iniciativa dessa natureza liderada pela sociedade civil é importante, mas ela seria muito mais poderosa e legítima se tivesse surgido de uma articulação que envolvesse efetivamente o MEC. Teria mais força e capacidade de orientar e assistir adequadamente as redes públicas, sobretudo as mais frágeis. Mas, como não é assim, o terceiro setor faz o que pode. Espaço vazio é ocupado.

Movimento Colabora Educação – Onde o diálogo sobre todos esses desafios que a pandemia apresenta acontece? Qual o canal institucional?

João Marcelo – Não existe esse canal porque o MEC sequer reconhece a pandemia como um problema.

Movimento Colabora Educação – Nem em outros setores? 

João Marcelo – Existe muita articulação entre as organizações da sociedade civil. E tem também o Conselho Nacional de Educação (CNE).

Movimento Colabora Educação – Como avalia a atuação do CNE nesse cenário?

João Marcelo – Acho que o CNE demorou para dar alguma resposta. Ou melhor, foi muito rápido em soltar uma nota, mas, nesse primeiro momento, ela tinha mais um caráter informativo e o efeito não foi tão grande. Depois, sim, divulgaram um parecer institucional, com várias recomendações para que conselhos estaduais e municipais e as redes saibam normatizar as atividades que estão sendo realizadas neste momento. Dito isso, o CNE desde o início, demonstrou entender a gravidade da crise, inclusive realizando diálogos diretos e bilaterais, como faz com o próprio Todos pela Educação. Nossos webinários já alcançaram mais de 15 mil pessoas. Ainda nesse sentido, Undime (União dos Dirigentes Municipais de Educação) e o Consed (Conselho Nacional de Secretários de Educação) também são atores importantes na articulação com estados e municípios.

Movimento Colabora Educação – E como será o futuro, o pós-pandemia? O debate sobre a volta às aulas parece uma questão fundamental mesmo ainda no meio dessa crise, certo?

João Marcelo – Boa parte das redes já está planejando o momento de volta às aulas. Todas as soluções do agora são apenas de mitigação. Elas não são perfeitas, integrais, não alcançaram todos alunos e professores. Constituem o que dá pra fazer, considerando os limites de condições, as capacidades e os recursos disponíveis. Nesse sentido eu aplaudo a disposição dos profissionais da educação que estão usando o máximo do que podem e sabem para gerar respostas possíveis hoje e pensar planos para o futuro.

Movimento Colabora Educação – E que futuro é esse? Que cenário encontrarão no pós-crise?

João Marcelo – São tantas as questões. As redes precisarão pensar medidas de infraestrutura, inclusive equipamentos de higienização para esse retorno. A etiqueta respiratória será um legado da pandemia. Teremos, ainda, que fazer avaliações diagnósticas com os alunos para saber quais estratégias pedagógicas precisarão ser aplicadas. Também vai ser essencial tratar da saúde mental de alunos e professores. O trauma é muito grande. As evidências internacionais mostram que até 25% de estudantes sofrem agravos psicológicos depois de traumas coletivos. Sem falar que vai ser importante lidar com o retrocesso dos índices de aprendizagem, com a reorganização do calendário e com a perda de recursos financeiros. A educação vai sofrer brutalmente com a queda da receita, por isso precisamos tanto falar de Fundeb.

Movimento Colabora Educação – Que é uma das prioridades do Todos pela Educação, certo? As pautas de vocês continuam as mesmas? O que mudou? 

João Marcelo – Pois é. Em alguma medida, e por uma infelicidade, o evento do Todos pela Educação, realizado em Brasília (10 e 11 de março), foi um dos primeiros alertas para todo o país [o encontro foi cancelado no primeiro dia de atividades por conta da suspeita de infectados]. Aquilo causou muita celeuma e teve grande visibilidade. Naquela mesma semana nosso time começou a atuar em formato de teletrabalho. Mas isso não significa que abandonamos nossas prioridades institucionais. Ainda estamos atuando pela aprovação do Fundeb e pelo avanço da tramitação do SNE no Congresso. São agendas cruciais, tanto em tempo de pandemia, como para o momento posterior. Sem o Fundeb a crise na Educação, que já vai ser grande, vai ser muito pior. E seu enfrentamento exigirá uma grande coordenação federativa dos esforços dos atores, ou seja colaboração. A pandemia, em alguma medida, aumentou a relevância das nossas metas institucionais. Por isso seguimos perseguindo-as.

Movimento Colabora Educação – E, para finalizar, o que estamos aprendendo com todo esse processo? É possível levar algo de positivo dessa jornada?

João Marcelo – De maneira geral, procuro fugir do clichê que o mundo será melhor depois disso. A história da humanidade mostra que, depois de grandes traumas, os períodos de transição são razoavelmente longos. Mas, posso dizer que o fim mais nobre da educação é garantir que as crianças, jovens e adultos aprendam a viver de maneira saudável e pacífica na civilização. É o que a constituição chama de cidadãos plenos. É a primeira razão de ser da escola pública moderna. O mundo hoje está envolvido em um exercício complexo e traumático. Ficar isolado não significa apenas proteger a si próprio, é cuidar também de pessoas que você não conhece e jamais vai conhecer. Se conseguirmos interpretar esse momento dessa forma será um aprendizado poderoso para as pessoas e para a sociedade.