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Reportagens Covid-19 desafia terceiro setor a articular ações conjuntas para apoiar educação pública brasileira maio | 2020
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O campo social brasileiro, também conhecido como terceiro setor – segmento da sociedade que congrega institutos e fundações privados, entidades religiosas, associações e organizações da sociedade civil de interesse público, entre outros formatos sem fins lucrativos -, é composto por cerca de 400 mil instituições, de acordo com o Mapa das Organizações da Sociedade Civil (OSC), lançado em 2015 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Um ecossistema complexo e diverso por natureza.

A contribuição desse campo para o desenvolvimento nacional e para a garantia do sistema democrático parece inquestionável. De acordo com a pesquisa Wellcome Global Monitor, 61% dos brasileiros confiam no trabalho realizado por organizações da sociedade civil (OSC). O conhecimento acumulado e a estabilidade da atuação do terceiro setor são uma segurança frente ao processo político e descontinuidades governamentais. Em tempos de crise, em meio a momento de grandes traumas, o papel das instituições que compõem o terceiro setor ganha ainda maior relevância. A pandemia provocada pelo novo coronavírus reforça a tese.

De acordo com Lúcia Dellagnelo, diretora-presidente do Centro de Inovação para a Educação Brasileira – CIEB, a chegada da pandemia colocou em revisão as estratégias e o modo de agir de todas as organizações, em especial daquelas que atuam na educação, já que as escolas foram fechadas e as aulas suspensas. Para ela, frente aos desafios mais complexos que se revelaram com a crise, apenas a articulação de diversos atores do campo poderia oferecer respostas concretas neste momento.

“Evoluímos muito [nos últimos dois meses]. Vejo um amadurecimento no terceiro setor. Se tem algo de esperançoso que essa crise aponta é a ideia de que nenhum indivíduo tem resposta absoluta, que precisamos estar juntos no enfrentamento dos problemas. É um trabalho imenso, é natural que encaremos certa desmobilização, mas existe uma coalizão de organizações agindo para apoiar estados e municípios a lidar com o cenário atual de ensino remoto”, analisa.

É nesse sentido, no desejo de articular forças e agir de forma colaborativa, que a diretora do CIEB e outras lideranças criaram um grupo de trabalho para reduzir danos à aprendizagem e viabilizar o acesso gratuito a recursos educacionais de qualidade para gestores de redes educacionais em todo o país.

A partir desse movimento surgiu, por exemplo, o projeto Aprendendo Sempre, uma plataforma gratuita na qual gestores, profissionais da educação e famílias podem acessar ferramentas e conteúdos de qualidade. “Buscamos referências em outros países que venceram a crise e observamos que havia espaço para criação de um ponto de convergência entre as soluções ofertadas entre todas as organizações do campo. Ali, cada gestor analisa o que faz sentido para aplicar na sua localidade, alinhado a sua realidade, considerando a imensa diversidade do país.”

Ao discutir a enorme importância do terceiro setor, a especialista lembra que, por si só, ela não basta. É fundamental articular ações com o poder público. E, nesse sentido, ressalta o sentimento de ausência do Ministério da Educação (MEC). Diz que a relação com os poderes em estados e municípios tem sido produtiva, mas com o Governo Federal é praticamente inexistente. E destaca o valor de dois atores que têm feito o possível para liderar o processo: Consed e Undime. “É uma ausência [do MEC] de efeitos irreparáveis. Faz muita falta também o Sistema Nacional de Educação, onde se estruturaria o Regime de Colaboração, independentemente da boa vontade das lideranças.”

Estratégias de ensino remoto em tempos de isolamento

Lúcia Dellagnelo reforça que a sociedade não pode confundir o que é educação a distância, modalidade regulamentada pelo MEC no Brasil, válida para o ensino médio, profissionalizante e educação de jovens e adultos (EJA), com o conceito de ‘estratégias de ensino remoto’.

O momento atual é ilustrativo. O isolamento social, medida recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para diminuir a velocidade de contágio do novo coronavírus, fez com que escolas em todo o Brasil fechassem suas portas. Estados e municípios, em um curto espaço de tempo, tiveram que lidar com o problema da perda de vínculo dos alunos com a escola. Regiões mais acostumadas a lidar com tecnologia por conta de dificuldades logísticas na oferta da educação, conseguiram sair na frente com soluções de ensino remoto, contudo, muitas redes ainda não se adaptaram.

“O ensino a distância depende de uma complexa organização de conteúdos, de uma metodologia específica. Diferentemente desse modelo, temos o que chamamos de estratégias de ensino remoto, que servem justamente para casos como o da pandemia de Covid-19. Hoje, observamos algumas redes mais ou menos desenvolvidas nesse sentido. Algumas ainda possuem práticas muito incipientes, informais inclusive. Ainda chamo atenção para outro ponto: mais do que monitorar se os alunos estão acessando, temos que avaliar  se ele está impactando a aprendizagem.”

O debate perde qualidade quando cai nessa dicotomia “este ou aquele”. Para a diretora do CIEB, os modelos – online e presencial – se complementam. Mas ainda há um longo caminho a percorrer para que tenhamos um desenho factível. “O que temos observado é a enorme valorização do modelo de aula presencial, pois nada substitui a importância do tempo na escola, das interações entre professores e alunos e estudantes e seus pares. A tecnologia deve ser estratégia de apoio.”

Outro ponto de atenção nessa conversa é entender que a escola não é apenas o espaço da exposição do aluno a conteúdos. A especialista lembra que existe uma série de direitos que são garantidos quando uma escola de qualidade é ofertada à população,:como à nutrição, à socialização e à proteção social.

“Minha esperança é que saiamos [da crise] com duas grandes lições: a primeira é que educação presencial é fundamental, indispensável. Acredito que a escola, como ambiente de educação e proteção social, sai valorizada. A segunda lição é que precisamos pensar a tecnologia para que ambos os modelos se complementem. Construir uma escola conectada. Não só com a internet, mas com professores e gestores capacitados, conteúdos organizados e disponibilizados de acordo com o currículo, com infraestrutura e visão clara de que a tecnologia é parte da vida de qualquer cidadão.”