voltar
Entrevistas Experiências do SUS são referências para a efetivação do Sistema Nacional de Educação dez | 2020
Compartilhar

Está no cartaz da manifestação, no meme na internet, no jaleco do gestor público em coletiva de imprensa. Quem imaginaria, antes de 2020, que falaríamos tanto sobre o Sistema Único de Saúde (SUS)? Se a pandemia de Covid-19 impôs uma série de novos protocolos sociais e de saúde para a população brasileira, também mostrou o valor do SUS. Do ministro ao estudante secundarista, o chamado é o mesmo: valorize o SUS.

O sistema é, sem dúvida, uma das maiores conquistas da sociedade brasileira. Desde 1990, a população têm acesso universal, integral e gratuito à saúde, caso raro no mundo todo. E o que aprendemos com essa experiência? O que é possível assimilar para a educação brasileira, especificamente para a regulamentação do Sistema Nacional de Educação (SNE)? Apesar de serem engrenagens bastante diferentes no federalismo brasileiro, algumas referências de um campo servem também ao outro. Quem explica melhor tudo isso é a pesquisadora e consultora Gabriela Lotta*, nossa entrevistada do mês. Lotta é referência no estudo, criação e implementação de políticas públicas em diversas áreas. Confira o bate-papo.

 

Movimento Colabora Educação – O Sistema Único de Saúde (SUS) é o maior sistema público de saúde do mundo. O Brasil é o único país com mais de 200 milhões de habitantes que oferece serviço de saúde gratuito a toda a sua população. Essas afirmações estão corretas? E, de uma maneira ampla, qual a grande conquista dessa política para a sociedade brasileira?

SUS e Sistema Nacional de Educação

Gabriela Lotta é referência no estudo, criação e implementação de políticas públicas em diversas áreas.

Gabriela Lotta – O SUS é o maior sistema público de saúde em termos de número de usuários. Ele atende, direta e indiretamente, 100% da população. Mas, 70% dela é usuária direta e única do SUS. Essa foi uma das maiores conquistas da sociedade brasileira, no sentido de garantir o direito à saúde de forma universal e integral. O SUS cobre todos os tipos de serviços existentes, tem uma rede muito ampla, robusta e capilarizada presente em todo o território nacional. Embora tenha problemas de qualidade e algumas vezes de oferta de certos serviços, ainda assim é uma grande conquista por permitir que todos e todas possam acessar o direito à saúde em seu território e de forma gratuita. Agora durante a pandemia vemos o impacto disso: a rede capilarizada cuidando da população que não sai da internação com dívidas impagáveis, como acontece nos EUA, por exemplo. Além de ser uma grande conquista em termos de garantia de direitos universais, o SUS também é uma conquista enorme para o federalismo brasileiro. Construímos, com ele, um sistema de coordenação e integração federativa muito robusto e bem estruturado que conseguiu nas últimas décadas diminuir desigualdades entre os municípios e construir capacidades estatais voltadas às políticas de saúde em todo o país. 

 

O SUS serve de exemplo para pensarmos um Sistema Nacional de Educação? O que há de valioso neste modelo que serve também à pauta da educação?

Ele deveria servir para pensarmos o SNE porque, diferente da Educação, o SUS (assim como o SUAS) conseguiu construir uma arquitetura institucional federativa que permite uma relação entre Estados, Municípios e Governo Federal de maneira muito mais harmônica. Há uma divisão clara de responsabilidades, há sistemas bipartites e tripartites de tomada de decisão conjunta, há instituições de participação social e se pensa de forma estratégica em como reduzir as desigualdades por dentro do sistema. Essa integração muito mais equilibrada conseguiu fazer a saúde no país avançar mais em termos de redução de desigualdades do que na Educação. 

 

O SUS é legitimado pela Constituição de 1988 e efetivado em 1990, quando o Congresso Nacional aprovou a Lei Orgânica da Saúde (8.080), que determinou os parâmetros de como deveria funcionar o sistema. O SNE também está na Constituição, mas ainda parece algo distante da prática. Qual o caminho a seguir? E como você encara o desafio da regulamentação e implementação dessa política?

Uma das explicações para a construção do SUS como tal está no chamado movimento sanitarista que congregava defensores da saúde pública e da municipalização e que estiveram presentes na constituinte e depois na regulamentação do SUS. Ou seja, havia um movimento forte e unido em torno da ideia de construção do SUS. Isso é uma prerrogativa importante para a Educação.

A regulamentação/construção do SNE depende de um movimento forte e coeso que defenda não apenas a educação pública, mas também uma arquitetura institucional federativa para a Educação. Esse é um primeiro passo necessário. Porque esse passo nos permite sair da tônica de uma competição entre municípios e estados para uma ação coordenada e conjunta. 

 

Um ponto nevrálgico dessa articulação toda talvez seja o fato de mexer na distribuição de recursos, não acha?

Sim. É importante lembrar que um dos elementos fundamentais do SUS é um sistema de financiamento tripartite. E mexer no financiamento é sempre difícil. Por isso também é importante pensar nessa coalizão e no convencimento. Além disso, o SUS se baseia em vários critérios que permitem algum grau de homogeneidade entre as ações feitas nos municípios – e que embasam, por exemplo, os sistemas de financiamento. Há muitos protocolos para alguns serviços e isso permite forçar alguma diminuição de heterogeneidade que é importante para redução de desigualdades. No caso da Educação é mais difícil pensar o que seria possível criar como protocolo. Certamente não é na área pedagógica, onde a autonomia docente deve prevalecer, mas nas áreas de gestão, nos sistemas de contratação e compra de recursos, ou mesmo no sistema de formação docente, talvez seja possível pensar alguns padrões mínimos que garantam maior equidade. Dadas estas especificidades, é importante que este consenso nacional em torno de um sistema seja construído a partir das coalizões com gestores, com representantes de professores, de movimentos estudantis para que entendam que a solução passa pela integração. É importante lembrar que o SUS foi construído “do zero”, onde não havia saúde pública antes, onde não havia equipamentos, servidores, etc. A Educação vai ter que gerar adesão entre toda estrutura e burocracia existentes. Por isso, envolver quem já está na política é fundamental. 

 

Acha que essa articulação no campo da política institucional e o debate no congresso são possíveis já para 2021?

A regulamentação do SUS passou pela edição de várias NOB [Norma Operacional Básica] ao longo do tempo. Acho que é possível começar em 2021 com algumas regulamentações sim. Não acho que o sistema todo fique pronto em 2021, mas acho possível aprovar a lei geral do SNE e começar a regulamentar alguns dos seus aspectos. Mas reforço que é imprescindível que a coalizão seja ampla e envolva, inclusive, os professores. Caso contrário, dificilmente a lei será implementada, porque ela depende de um acordo nacional muito robusto. 

 

Falando nisso, é importante lembrar que o SUS conta com ampla participação também da sociedade civil por meio dos conselhos de saúde. De maneira geral, isso funciona? Acha que é um modelo válido também para o SNE?

Nos últimos 30 anos o país construiu milhares de conselhos de políticas públicas nas mais diversas áreas, inclusive Saúde e Educação. A avaliação geral dos especialistas é que foi uma grande conquista, embora vários conselhos tenham problemas e deveriam ser melhorados. No caso do SUS, uma vantagem é que o sistema de participação (conselhos e conferências) está vinculado à arquitetura do sistema. E isso é um diferencial. Por exemplo, os planejamentos são dos três entes, de maneira ascendente e descendente, e precisam ser aprovados pelos respectivos conselhos. Isso ajuda a integrar a participação ao processo decisório. E acho um bom exemplo a seguir, embora haja também conselhos na área de Educação e o próprio CNE [Conselho Nacional de Educação] seja muito ativo. 

 

Um dos princípios do SUS coloca em destaque a questão da equidade. Ou seja, uma diretriz para nortear os serviços de saúde considerando que, mesmo que todos tenham os mesmos direitos, as desigualdades serão consideradas de modo que, onde a carência é maior, haja mais investimento. Temos agora o Novo Fundeb aprovado e ele tem o Regime de Colaboração como um modelo necessário para funcionar. Acha que a questão da garantia da equidade também deve ser diretriz para a oferta da Educação?

Sim, deve ser uma diretriz central. Em um país tão diverso e desigual como o Brasil, a equidade tem que ser um princípio a nortear todas as nossas políticas que se propõem a gerar efetividade e redução de desigualdades. E é importante considerar dentro da dimensão da equidade também a lógica do respeito às diversidades. Isso também é fundamental no SUS: embora haja problemas nacionais (como estratégia de saúde da família), com alguns protocolos comuns para todo o país, o desenho da política permite adaptação para o território nacional e para grupos específicos, como indígenas e quilombolas. Ou seja, a ideia é construir um mínimo comum, que garanta acesso igual, mas com as adaptações necessárias, que permitem redução de desigualdades e respeito às diversidades. 

 

Por fim, a pergunta mais difícil: como a sociedade civil pode se mobilizar para fazer com que o SNE entre na pauta do Congresso Nacional em 2021?

Como mencionei anteriormente, a sociedade precisa mobilizar uma coalizão muito ampla envolvendo gestores dos três entes federativos, professores, representantes da academia, da sociedade civil e dos alunos. Esta diversidade na coalizão é a única forma de construir o SNE de maneira mais harmônica e garantir sua implementação.

 

 

* Gabriela Lotta é professora e pesquisadora de Administração Pública e Governo da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Doutora em Ciência Política pela USP, mestre e graduada em administração pública pela FGV. Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB). Docente da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). É pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). É bolsista produtividade 2 do CNPQ. Coordenadora da Área Temática Estado e políticas públicas da Associação Brasileira de Ciência Política (ABCP) e diretora da pesquisa da Associação Nacional de Ensino e Pesquisa do Campo de Públicas (ANEP/CP). Trabalhou com assessoria, pesquisa e formação para diversos governos.