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Reportagens Mudança de ciclo na educação: “É preciso olhar para a trajetória completa do estudante” out | 2020
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Recentemente, o Ministério da Educação divulgou os resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) 2019. Tais dados nos permitem observar uma fotografia em plano aberto sobre as desigualdades nas aprendizagens e são ferramentas importantes para construção, implementação e aprimoramento das políticas públicas educacionais. Contudo, todo número é um universo em si. Por trás de cada nota, existem milhões de rostos de meninos e meninas submetidos a diferentes realidades escolares. 

É o caso de Anderson Fabrício dos Santos Júnior, 17 anos, e Kaique dos Santos, 20. Dois jovens que vivem na maior cidade da América Latina e percorreram diferentes trajetórias em escolas públicas de São Paulo. Percursos marcados por travessias normalmente desafiadoras, como a mudança do ensino fundamental para o médio. 

O cruzamento dessa linha, que em geral também marca a virada de infância para a adolescência, representa a mudança de escola, o aumento de responsabilidades, e pode ser bastante traumático. De acordo com o Censo Escolar de 2017, 15,8% dos jovens repetiram o 1º ano do ensino médio e 7,8% abandonaram a escola justamente nessa série – um recorde entre todos os anos das etapas da educação básica.

As angústias são diversas: ambiente desconhecido, maior número de disciplinas, novos amigos, uma rotina escolar inédita. Kaique conta que o primeiro susto foi a multiplicação de alunos. A sala de aula lotada e professores com condições adversas para administrar toda aquela energia. “Senti que ali eu precisaria correr atrás de tudo sozinho.”

Ele lembra também que saiu de uma escola municipal que tinha uma filosofia mais “humanizada”, inclusive com diversas atividades esportivas, de lazer e de integração de estudantes, e caiu em uma escola estadual que em nada lembrava o ambiente vibrante do passado. De acordo com suas próprias palavras, “tinha até cara de penitenciária”. 

“Não passei por nenhuma atividade de integração. Cheguei e, de repente, estava numa sala de aula cheia de gente nova”. Assim, virou estatística: já no segundo ano perdeu o interesse e desistiu de ir à escola. Hoje, corre atrás do que pausou no passado frequentando uma turma de Educação de Jovens e Adultos (EJA), e tem muito interesse por política, em especial por educação pública. Sabe que a transformação social começa aí.

A história é bem diferente no relato de outro jovem, Anderson, hoje estudante de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Tive a sorte de passar pela transição do fundamental para o médio na mesma escola. Eu sabia que seria um choque cultural, um momento de novas descobertas, mas tudo foi relativamente tranquilo. Havia muita conversa em sala de aula sobre o futuro, a direção passava nas turmas, ouvia nossas dúvidas. Depois, já no ensino médio, a primeira semana também contou com atividades de integração. Muitos professores eram os mesmos, o que facilitou a adaptação. E ter participado do movimento estudantil secundarista também ajudou muito a entender esse novo mundo.”

Contudo, Anderson acredita que é ponto fora da curva. “Muita gente desiste. É normal perder a motivação. A pressão para trabalhar também é uma questão. Quando a escola é boa, acolhe, e os parentes podem ajudar, é mais fácil continuar. Sei que fui bem privilegiado em alguns pontos.”

Da hora da partida ao momento da acolhida

Para Antonio Menezes da Costa, supervisor do Gabinete da Secretaria-Executiva Adjunta do Interior/SEDUC Amazonas, todo momento de virada de etapa de ensino é complexo e exige atenção da comunidade escolar. Ele explica que é natural que os estudantes estejam ansiosos e até inseguros com o que o novo ciclo irá proporcionar. Afinal, tudo é novidade: o currículo, a estrutura, a organização da rotina e, muitas vezes, os professores e os colegas. 

Independentemente da rede – municipal ou estadual – que oferte o ensino fundamental, é importante que exista diálogo entre escolas das diferentes etapas da educação básica para criar pontes seguras entre o 9º ano e o 1º do médio – e o mesmo vale da educação infantil para o fundamental, aponta o especialista. 

Apesar de não existir fórmula ou receita para minimizar traumas na virada dos ciclos, Antônio lembra que a colaboração entre as diferentes redes e/ou unidades escolares pode ser medida de mobilização de esforços para atenção aos estudantes. “Sem dúvida, o Regime de Colaboração é muito importante e eficaz para que os municípios, sobretudo aqueles com os menores orçamentos, conduzam a transição de uma etapa para outra da melhor forma e sem traumas.”

O gestor dá exemplos: “Muitas ações podem ser utilizadas, como palestras de apresentação da estrutura e funcionamento da nova etapa, visitas às escolas do próximo ciclo, interação entre alunos e professores, apresentação das possibilidades de escolha de itinerários formativos e novos componentes, realização de rodas de conversa, abordagem das possibilidades de carreira técnica no caso do ensino médio e preparação de acolhida dos novos estudantes no início do ano letivo, entre outras.”

No caso do estado do Amazonas, região marcada por questões geográficas específicas e desigualdades econômicas severas, o contexto é muito particular. Por lá, o processo de municipalização do ensino fundamental é conduzido com muito cuidado. Dada a vulnerabilidade de muitas cidades, o estado ainda precisa prover oferta nessa etapa de ensino.

Essa estratégia de aporte do estado na educação básica municipal é fundamental para que os estudantes amazonenses não vivenciem histórias parecidas com a de Kaique, nosso personagem no começo da reportagem. 

“Entre 2016 e 2019 estive à frente da Gerência do Ensino Médio e percebi que a maioria das prefeituras não possui recursos suficientes para atender a demanda de ensino fundamental e investir na melhoria da qualidade do ensino municipal. Daí a importância do suporte do estado, mas ainda há muito a avançar.”

Para Antônio, o diálogo é sempre bem-vindo e a boa relação entre os entes federativos pode, sim, ser estratégia para apoiar milhares de estudantes a atravessarem as fronteiras dos ciclos de ensino da forma mais tranquila possível. Para ele, vale a máxima que pautou diversos debates sobre o Novo Fundeb, aprovado em agosto na Congresso Nacional, e é ponto orientador do Sistema Nacional de Educação, que entra na agenda pública a partir de agora: “Só transformaremos a educação quando olharmos para a trajetória completa do estudante, da educação infantil ao ensino superior”.

 

AGENDA COLABORA

As histórias de Anderson e Kaique chamam atenção para um desafio sistêmico da educação brasileira: a trajetória escolar fragmentada devido à ausência de articulação e de pactuação entre os entes federativos. 

A Constituição Federal define que os municípios devem ser os responsáveis pela educação infantil e ensino fundamental I. O ensino médio é prioridade dos governos estaduais, que também podem gerir o ensino fundamental II. A transição do aluno entre etapas geralmente é motivo de preocupação para os gestores. Da escola do município, o aluno migra para a escola do estado. Como garantir que essa mudança não afete a aprendizagem ou seja traumática? 

Nesse sentido, é preciso garantir a fluidez e coerência na trajetória dos estudantes, seja em uma escola do município ou do estado. Inclusive, este olhar integral é uma premissa do Sistema Nacional de Educação

No SNE, em instâncias de pactuação, estados e municípios podem prever estratégias conjuntas para a oferta da educação básica, garantindo aprendizagem adequada e de qualidade para todos.