voltar
Entrevistas Entrevista: “Precisamos urgentemente de uma educação antirracista” nov | 2020
Compartilhar

O mês de novembro trouxe para a pauta nacional um debate que deve acontecer o ano todo: como promover uma educação antirracista e combater desigualdades étnico-raciais. Para contribuir com a pauta, o Movimento Colabora Educação destaca uma entrevista com Alexssandro Santos, diretor-presidente da Escola do Parlamento. Ativista e militante do movimento negro, professor, gestor e pós-doutor em Administração Pública, nosso convidado propõe reflexões sobre o racismo estrutural da sociedade brasileira e seus efeitos na educação pública. Confira.

 

Movimento Colabora Educação – Para começar, gostaria que você falasse um pouco sobre a Escola do Parlamento, instituição que você preside. 

Alexssandro Santos – A instituição é uma escola de governo que funciona dentro do poder legislativo. Seu papel é duplo: qualificar o trabalho do poder legislativo, realizando capacitação técnica e política para os vereadores e servidores; formar e fazer educação política para a cidadania olhando para toda a sociedade. Ela já existe há 10 anos.

 

educação antirracista

Alexssandro Santos em entrevista ao Movimento Colabora

O mês de novembro é marcado pela celebração do Dia da Consciência Negra, momento em que a sociedade é convidada a refletir sobre nosso racismo estrutural e a necessidade de ações afirmativas para a população negra. Por que essa data é tão importante?

O 20 de novembro é uma conquista histórica do Movimento Negro. A primeira vez que nós propusemos a celebração do dia foi em 1971, em Porto Alegre (RS), com o grupo Palmares. Contudo, o Estado brasileiro só acolheu essa reivindicação e encampou a pauta no governo Lula, em 2003. Esse marco tem a ver com a resistência e a luta histórica da população negra em sua demanda por reconhecimento de cidadania. Ao mesmo tempo que fazemos um dia de celebração pela nossa presença histórica no país, também lembramos o quanto é difícil lutar contra o racismo estrutural. Veja, apenas para reconhecer uma data festiva, algo simples, demorou-se 22 anos. Isso nos lembra o quanto é difícil para a população afrobrasileira demandar sua cidadania plena e encontrar reconhecimento no Estado. 

 

E como foi o 20 de novembro deste ano para você?

Este ano em particular a data tem dois significados adicionais. O primeiro é que a pandemia de Covid-19 explicitou mais um lado da nossa desigualdade racial. Ela impactou a vida da população negra de maneira muito mais avassaladora do que a da população branca. Para ilustrar, sabemos que 71% das pessoas que perderam ou diminuíram renda são negras. 

E, claro, o assassinato do João Alberto na última quinta-feira (19) impôs um gosto amargo para todos e uma revolta muito grande. Eu vivi a sexta-feira com um misto de muita dor e de um desejo enorme de continuar essa luta. Não podemos manter a ilusão de que o Brasil é uma democracia racial. Não podemos tolerar que o chefe da nação diga que a cor da pele não tem impacto na vida e na cidadania das pessoas. 

 

Você percebe o racismo também arraigado na nossa educação pública?

O fato do racismo ser estrutural implica entender que ele contamina todas as nossas instituições e relações, inclusive as pedagógicas. Sim, o racismo se manifesta dentro da escola. A escola experimenta o racismo em uma dupla chave: nos impactos que acontecem fora e os impactos singulares também dentro do ambiente escolar. Isso não significa dizer que os profissionais da educação têm consciência disso. Na maior parte das vezes, as práticas  e comportamentos racistas são realizados com baixo grau de consciência de quem os está praticando. A professora não acorda de manhã imaginando como ela pode ser mais racista naquele dia. Se trata de um conjunto de comportamentos e práticas que estão arraigados às nossas subjetividades, ao nosso modo de pensar e sentir. 

 

Alguns estudos apontam esse cenário cotidiano que você acabou de relatar.

Exato. Estou falando baseado em pesquisas e não apenas a partir da minha condição de ativista e militante. O campo da educação tem estudos consolidados, há pelo menos três décadas, que mostram como o racismo se manifesta desde a educação infantil e acompanha a trajetória dos estudantes até o final da educação básica. 

Nós formamos professores e professoras no Brasil com baixíssimo letramento racial. Não fazemos, como deveríamos fazer, a discussão profunda sobre como é viver em uma sociedade com racismo estrutural. Os educadores não têm ferramentas para esse enfrentamento. 

E os resultados são evidentes: nos anos iniciais do ensino fundamental, a taxa de matrícula líquida das crianças brancas é praticamente idêntica à das crianças negras, em torno de 95,7%. Conforme se avança na escolarização, a taxa de matrícula líquida das crianças negras vai diminuindo numa velocidade muito maior do que a taxa de matrícula das crianças brancas. Ao final do ensino fundamental, já temos uma diferença de cinco pontos percentuais e ao final do ensino médio, a diferença supera 10 pontos percentuais. Os dados que trago são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios de 2019. O que isso significa? Que as crianças negras vão abandonando a escola e ficando para trás no processo de escolarização. E essa desigualdade racial vem sendo tolerada no Brasil, sem muitos esforços de ação afirmativa para corrigi-la.

E quando olhamos para a aprendizagem é a mesma coisa. O Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional) fez um estudo com os dados de proficiência da Prova Brasil. É chocante: no quinto ano do ensino fundamental, a diferença na nota padronizada entre negros e brancos é de um ponto [em uma escala de zero a 10]. Isso é uma evidência muito contundente de que a escola não acolhe como deveria as crianças negras.  

 

São realmente números alarmantes e que certamente contribuem para a manutenção de uma sociedade profundamente desigual, não?  

Sim, claro. E ainda neste ponto, quero deixar mais uma coisa explícita: o racismo compromete também a formação das crianças brancas. Vamos produzindo nelas uma formação moral e ética que tolera o racismo. A gente constrói essa ideia de superioridade que é fictícia e muito violenta. Uma educação racista não serve a ninguém, nem para as crianças negras, nem para as crianças brancas. A educação antirracista permite que todos entendam o que é esse tal de lugar de privilégio chamado branquitude. 

 

Em 2003 foi sancionada a Lei 10639/03 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e incluiu no currículo oficial das redes de ensino a obrigatoriedade da presença da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Como você vê essa política? Acredita que, na prática, ela tem acontecido?

Acho que demos alguns passos, insuficientes ainda, na implementação da lei. Mas é importante que reconheçamos os passos já dados porque eles nos ajudam a entender o impacto. Por exemplo, os livros didáticos apresentam hoje um cuidado com a questão racial que a gente não tinha antes de 2003. O Movimento Negro fazia, há 30 anos, uma denúncia que o livro didático era um veículo de disseminação do racismo no Brasil. Outro aspecto onde avançamos muito foi a ideia de valorização das identidades das crianças negras na escola. Professores e professoras têm manifestado esforço em reconhecer e valorizar essa identidade. Mas ainda há um longo caminho pela frente

Os Municípios e Estados ainda não implementaram políticas consistentes de formação de professores que considerem as relações étnico-raciais. 

Outro ponto: o Brasil não tem feito uma reflexão propositiva sobre resultados de aprendizagem. É inaceitável que os números de aprendizagem das crianças negras sejam tão diferentes das brancas. É inadmissível que não haja política pública para corrigir isso. Se já sei que o fluxo escolar da criança negra é mais acidentado, com mais abandono, mais evasão, mais reprovação, a pergunta que faço é: quais são as políticas afirmativas que as prefeituras e governos de estado fazem para evitar isso? A resposta é: nenhuma. É como se fosse natural que as crianças negras ficassem atrasadas. 

Por fim, precisamos que os projetos político-pedagógicos sejam orientados para uma perspectiva antirracista. Não basta o professor na sala de aula ter práticas pedagógicas comprometidas com o enfrentamento ao racismo, o projeto pedagógico precisa ter isso como um princípio organizador. 

 

Para o Movimento Colabora Educação, o tema do Regime de Colaboração (RC) tem impacto direto na questão de equidade. Ou seja, uma gestão coordenada da Educação contribui para garantir qualidade para todos e todas. Você concorda? 

 

No arranjo brasileiro, sem o Regime de Colaboração é muito difícil que a gente faça a equidade acontecer de verdade. Temos um regime de distribuição de recursos e também uma diferença no grau de capacidade técnica instalada muito grande entre União, Estados e Municípios. Na chave vertical do Regime de Colaboração é fundamental que a União faça a indução de políticas para a equidade racial. A União tem muito instrumento para isso – de financiamento, de assistência técnica, de avaliação externa. Contudo, na atual gestão, essa indução desapareceu do governo. Não é uma agenda do Ministério da Educação. Ainda assim, políticas do tipo podem ser plenamente desenvolvidas e disseminadas pelos estados que, em tese, possuem mais capacidade técnica que os municípios. 

No nível horizontal também vejo oportunidades. Nos arranjos ou consórcios, e o que menos importa aqui é o nome, é possível desenvolver políticas de equidade e garantir incidência territorial. 

Por último, a questão do RC é fundamental para um dos campos das relações étnico-raciais que são as escolas quilombolas e indígenas. Um território de uma comunidade tradicional não necessariamente está circunscrito a apenas um município. Assim, desenhar políticas educacionais para estes territórios exige que os municípios colaborem. 

 

Em que caminhos temos que seguir para fortalecer a ideia de uma educação antirracista? Acha que a sociedade brasileira está mais vigilante sobre o tema?

O princípio fundamental é distribuir o poder que está concentrado na branquitude. Seja ele político, econômico ou cultural. É inaceitável que prefeitos e governadores não componham o seu time de secretários com pessoas negras. E no caso da educação não é diferente. As equipes precisam ser diversas. Representatividade importa demais. As pessoas negras precisam estar na formulação de ações, dividindo poder político. Do ponto de vista financeiro, precisamos pensar que políticas, para serem implementadas, exigem recursos. Tem que alocar dinheiro. Somente boas intenções não resolve o problema. Por fim, temos que enegrecer as narrativas simbólicas que circulam nas políticas públicas. Os gestores precisam dar visibilidade para pessoas negras em todas as suas decisões. E, para tal, as secretarias precisam ter nitidez dos dados de aprendizagem divididos por raça. Se elas não sabem o tamanho da desigualdade, como vão agir?

Precisamos reconhecer que o racismo estrutural contamina o coração e a mente de todos que atuam na educação. Assim começamos a mudar esse país.